Ao manter foco na questão econômica, o governo perde oportunidade de contribuir para a segurança de motoristas e passageiros
Em meio ao crescente debate sobre a regulamentação do trabalho dos motoristas de aplicativos de transporte no Brasil, a recente proposta assinada pelo governo federal foca apenas em aspectos econômicos e perde uma grande oportunidade de criar mecanismos para resguardar a segurança dos motoristas e passageiros, principalmente no que diz respeito ao transporte feito por motocicletas, modalidade que vem crescendo em todo país. A avaliação é do especialista em Medicina do Tráfego e coordenador da Mobilização Nacional de Médicos e Psicólogos Especialistas em Trânsito, Alysson Coimbra.
A proposta parece esquecer que, além de uma fonte de renda para milhares de brasileiros, o transporte por aplicativo é, antes de tudo, um serviço que coloca em contato direto seres humanos em movimento pelas cidades. “A segurança dessas interações deveria ser o ponto de partida para qualquer discussão regulatória. É imperativo considerar um modelo geral que assegure motoristas devidamente treinados, em perfeita condição de saúde física, mental e psicológica conduzindo veículos vistoriados e adequadas para trafegar”, comenta Coimbra.
Atualmente, enquanto taxistas, por exemplo, enfrentam uma série de regulamentações rigorosas, incluindo inspeções veiculares frequentes, os motoristas de aplicativos operam sob um regime significativamente menos exigente. Essa discrepância cria uma disparidade não apenas em termos de custos operacionais, mas, mais preocupantemente, em termos de segurança para passageiros e motoristas. “Não há como garantir, na prática, que os motoristas tenham o tempo de descanso necessário, uma vez que ele pode atuar em várias plataformas. Por isso, é preciso regulamentar a jornada de trabalho para todos. Há que se considerar, ainda, nessa equação, a atuação crescente do transporte de passageiros em motocicletas em diversas cidades brasileiras sem qualquer tipo de regulamentação, desconsiderando as condições regionais de tráfego e expondo assim motociclistas e passageiros a riscos gravíssimos”, comenta Coimbra.
Segundo o especialista, a regulamentação desse serviço vem sendo deixada de lado uma vez que, por atender pessoas insatisfeitas com o transporte público, ele segue sendo uma alternativa para evitar desgastes para as Prefeituras nesse ano de eleição, mas essa justificativa é inadmissível e a regulamentação deve ser urgente. “Apesar de o serviço de mototáxi ser gerido por uma lei federal, cabe a cada município fazer uma regulamentação, o que nem sempre acontece. O problema é que algumas cidades não comportam esse modelo, como é o caso de capitais como Belo Horizonte. O transporte remunerado de passageiros em motocicletas é uma questão de saúde pública que coloca em risco os prestadores e os usuários, mas que é respaldada por uma lei que desconsidera a realidade e os regionalismos do trânsito em cada município da federação”, acrescenta.
Saúde X Segurança
O fator humano, responsável por 90% dos sinistros de trânsito, demanda uma atenção especial. A necessidade de reduzir o prazo de renovação da CNH para motoristas profissionais é evidenciada pela importância de garantir um acompanhamento constante da saúde física, mental e psicológica desses profissionais. “Ao utilizar o veículo como um instrumento de trabalho perde-se completamente a possibilidade de equiparação ao uso pessoal como é feito pela maioria dos motoristas. Trajetos longos e mesmo os repetitivos aumentam a exposição ao risco, e quando a saúde física e psicológica desses profissionais não é avaliada com a devida periodicidade, o risco é compartilhado para todos nós”, comenta Coimbra.
Esses exames detectam a presença de transtornos, ou o agravamento deles, que interferem diretamente na capacidade do motorista dirigir em segurança. “Transtornos mentais como ansiedade, estresse, síndrome de Burnout, por exemplo, são algumas condições que potencializam a violência viária. Além disso, problemas na visão, na capacidade de reação e no desempenho cognitivo são outros fatores que podem potencializar os riscos de mortes no trânsito”, explica o especialista em segurança viária Alysson Coimbra.
Longe da meta
Ao focar exclusivamente em aspectos econômicos, o projeto do governo perde a oportunidade de abordar de maneira efetiva a segurança viária. “A discussão não deve se limitar à viabilidade econômica do serviço, mas deve incluir medidas concretas para garantir a segurança dos usuários e dos prestadores do serviço. Isso inclui a padronização de inspeções veiculares, o entendimento da importância do uso profissional de um veículo e a consequente contrapartida que isso deve exigir, como a redução da periodicidade para renovação da CNH, que hoje é de até 10 anos. A avaliação médica e psicológica é a única garantia de que, em algum momento, o motorista que esteja doente seja afastado da direção veicular para a garantia do tratamento e retorno supervisionado às atividades profissionais. Ao invés de criarmos subcategorias de motoristas, deveríamos retornar ao passado não muito distante onde a saúde do motorista era tratada com seriedade e a segurança viária figurava no topo das principais políticas públicas do Brasil”, reforça o coordenador da Mobilização.
O Brasil está cada vez mais distante da meta da ONU de reduzir pela metade as mortes no trânsito até 2030, e se quisermos reverter essa tendência, é vital que as discussões sobre o transporte ultrapassem o limite dos aspectos econômicos, populistas e com fins eleitoreiros, como aconteceu no governo anterior. “Estamos pagando um alto preço social e econômico com as tragédias nas ruas, estradas e rodovias do Brasil. Um sofrimento que ultrapassa os envolvidos e atinge toda a população com os gastos astronômicos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e Previdência Social para o custeio dessas tragédias evitáveis”, completa o especialista.
Fonte: Patricia Penzin